CEBs - VISÃO DE CONJUNTO
1)
Descrição
Por
comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ou Comunidades Cristãs populares se
designa uma nova experiência pastoral, ou melhor, um novo movimento eclesial
global surgido na América Latina e por todo o mundo em geral, a partir dos anos
60. Trata-se de grupos de cristãos leigos, geralmente pobres, que se reúnem
regularmente (uma vez por semana ou cada quinze dias) nas casas de família ou
em centros comunitários, a fim de ouvir e aprofundar a Palavra de Deus,
alimentar a comunhão fraterna e assumir o compromisso cristão no mundo.
Do
ponto de vista de sua estruturação interna, as CEBs são muito diversificadas.
Há CEBs constituídas de grupos elementares (de 10 a 15), chamados
"círculos bíblicos", "grupos de evangelização" ou
"encontro de 'irmãos'" e que se reúnem, normalmente e por própria
conta, nas famílias. Outras CEBs constituem, já de entrada, uma Comunidade de
famílias (quinze ou mais) e se reúnem nalguma capela ou salão comunitário. De
todos os modos, num e noutro tipo de CEBs existem: a) uma coordenação,
que articula e anima a caminhada de toda a Comunidade; b) um programa de
atividades: culto, formação, festas, celebração dos sacramentos, etc.; c)
organização dos diversos serviços ("ministérios leigos"), como
o cuidado dos doentes, a catequese, a liturgia, a administração do batismo,
etc. As CEBs nascem e se desenvolvem no espaço das paróquias e mantêm com estas
uma relação de comunhão e ao mesmo tempo de renovação, como veremos melhor.
Os
elementos constitutivos de toda CEB são: a) a Bíblia, ouvida e
partilhada juntos e confrontada com a vida do povo; b) a comunidade,
unida e organizada em seus vários serviços; c) os compromissos
concretos, que a Comunidade assume na linha da justiça e da solidariedade
("caridade social").
A
partir desses elementos, se entende por que se fala em CEBs:
a)
Comunidade:
porque se trata de agrupamentos primários, onde vigem relações de profunda
comunhão fraterna; b) Eclesiais: porque são grupos propriamente religiosos,
mais especificamente cristãos que se reúnem em Igreja a partir da Palavra de
Deus; c) de Base: porque constituem associações elementares, sendo
células de Igreja ou eclesiolas. De fato, elas partem dos constitutivos
"básicos" da Igreja: Palavra, fé, batismo, caridade fraterna, serviço
aos outros, etc., e assim formam a base da Igreja que é o laicato. Esse
sentido eclesiológico primeiro da palavra base coincide, no Terceiro Mundo, com
o sentido sociológico segundo, pelo qual "base" significa popular.
Na verdade, as CEBs se formam a partir das camadas da população e por isso se
situam em geral no campo e nas periferias urbanas.
2) Origens e desenvolvimento
Limitando-nos,
para começar, a América Latina, as CEBs surgiram na década dos anos 60. São
vários os fatores que provocaram seu surgimento:
1.)
Fatores sociais:
Os anos 60 são conhecidos na América Latina como a "década do
desenvolvimento". É a época de grande progresso econômico e enorme
vitalidade social, particularmente em nível popular. Tal vitalidade, induzida
de cima por governos populistas, se exprime nos mais diversos movimentos
sociais: de sindicalização, de educação de base, de organização comunitária, de
assistência técnica e de promoção humana em geral. O triunfo da revolução cubana (1959), com
suas repercussões no Continente, só fez acelerar esse processo de fermentação
popular. Ora, foi nesse terreno que as CEBs lançaram raízes. O fim da
"ilusão desenvolvimentista" e o surgimento de uma consciência social
distinta (dependência/libertação) dos fins dos anos 60, assim como a emergência
de regimes militares, não impediram, antes aprofundaram, o processo já em curso
das CEBs.
2.)
Fatores eclesiais:
Dentro da atmosfera histórica acima referida, como reagiu a Igreja? Há aqui uma
complexidade de elementos, entre os quais poder-se-iam distinguir:
a)
A crise e o fracasso da pastoral
tradicional, centrada na paróquia e no clero e que
não consegue mais atender à massa católica do Continente latino-americano. Essa
seria como uma "causa defectiva", ou melhor, um desafio, que provocou
reações positivas em direção do que iriam ser as CEBs;
b)
O surgimento da pastoral social
da Igreja, que une leigos comprometidos da "Ação Católica
Especializada" (JUC, JOC, etc.) e bispos proféticos, como D. Larrain
(Talca, Chile), D. Hélder Câmara (Recife, Brasil) e outros;
c)
A Conferência Episcopal
Latino-Americana (CELAM), em suas assembléias de Medellín (1968) e de
Puebla (1979), que confirmam formalmente e relançam a nível continental a
experiência em curso das CEBs;
d)
O Sínodo dos Bispos da Igreja Católica,
realizado em 1974, e, cujos resultados Paulo VI recolheu na Evangelli
Nintiandi (1975), a qual homologou as CEBs como uma proposta eclesial
válida em nível mundial (nº 58 deste documento).
É,
pois, dentro desse "caldo cultural", social e eclesial, e a partir da
iniciativa de alguns sacerdotes, que fermentaram aqui e ali em todo o
continente e no Terceiro Mundo em geral, focos de criatividade eclesial,
primeiro na forma ainda indefinida de grupos populares, onde os interesses de promoção
humana e de formação religiosa se misturavam; depois, como CEBs
progressivamente caracterizadas. No Brasil, que
esteve à frente desse processo, a primeira CEB pode ser citada como
sendo a de São Paulo do Potengi (diocese de Natal, nordeste do Brasil), bem no
início dos anos 60, sob a animação de Mons. Expedito de Medeiros. O "Plano
de emergência" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
elaborado em 1962, sob recomendação de João XXIII, partindo das experiências em
curso, já lança a idéia das CEBs como proposta pastoral inovadora e promissora.
O "Plano Pastoral de conjunto - 1966 - 1970", elaborado em 1965,
apresenta as CEBs como prioridade pastoral em nível nacional.
Isso
quanto à América Latina. Todavia, importa constatar, que nos últimos tempos, o
"Comunitarismo" é um fenômeno que se alastra, de mais a mais e não só
nas Igrejas, mas através do mundo inteiro. Um de seus móveis principais foi e
continua sendo certamente a reação contra uma sociedade de massa e anonimizante,
reação essa que teve na "revolução de 68" seu símbolo e seu estopim
mais expressivos. Tudo isso teve seus reflexos inclusive no interior das
Igrejas, na medida em que estas também representam instituições rígidas e
massificantes. Essa vontade de participação pessoal, pela mediação da
comunidade, representa, no Primeiro Mundo, o fator sem dúvida mais poderoso do
fenômeno "comunitarista". Esse fator, relativamente autônomo, recebeu
em seguida, nos meios eclesiais, um reforço a partir da influência das CEBs do
Terceiro Mundo. Na África e na Ásia o Processo parece ser análogo: fatores
internos, entre os quais a cultura tribal africana e a situação social de
minorias religiosas na Ásia, foram reforçados pelo exemplo das CEBs
latino-americanas, favorecendo assim a emergência de CEBs próprias. Seja como
for, o fenômeno do "comunitarismo" é extremamente difuso e magmático
nas sociedades modernas. Desse fenômeno, as CEBs não são senão uma expressão
particular, ainda que nova e significativa, sobretudo em termos de Igreja.
Atualmente
existem CEBs em quase todo o mundo, embora sob diferentes formas. Na América
Latina se acham bastante difundidas, particularmente no Brasil, no Chile,
Bolívia, América Central, México. Na África encontram-se no Zaire, na África do
leste (Zâmbia, Tanzânia, Camerun, Malawi, Uganda, Kênia) e na África Ocidental
(Rwanda, Burundi, Alto Volta). Na Ásia estão presentes nas Filipinas, na Índia,
na Malásia. A Europa conta com um movimento expressivo de Comunidades de Base,
especialmente na Espanha, na Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica. Nem na Europa
do leste estão ausentes: a Hungria e a Polônia possuem as suas CEBs. Mesmo na
União Soviética e na China podem-se encontrar comunidades religiosas de base,
sem falar dos Estados Unidos e do Canadá. Em todos os casos, onde há gente que
se reúne, seja lá quem for socialmente ou seja onde for, para assumir
conjuntamente a própria fé e suas exigências, lá se inicia uma Comunidade
Eclesial de Base.
3)
CEBs e a grande instituição eclesial
As
CEBs são filhas da própria Igreja institucional. São agentes pastorais da
própria Igreja - padres, irmãs ou leigos - que na maioria das vezes as iniciam
e continuam animando-as.
O
processo de relacionamento das CEBs com a Igreja instituída passa por
diferentes etapas que, em geral, são as seguintes:
1.
Inicialmente, as CEBs surgem nas
margens da instituição eclesial, ente a massa que a pastoral da Igreja não
consegue atingir. Trata-se então de um verdadeiro processo de eclesiogênese, no
sentido do nascimento da Igreja, mas agora em moldes novos: leiga, popular,
participativa, bíblica, evangélica, profética, libertadora.
2.
Depois, essas CEBs, crescendo, penetram
no campo eclesial já instituído. Fazem-se presentes e influindo na liturgia,
catequese, reuniões, etc. Então ocorre um período de conflitos mais ou menos
dolorosos, com a instituição, pois o "novo modo de ser Igreja" - como
se definem as CEBs - se choca com o modo tradicional e com sua dinâmica
centralizadora.
3.
Finalmente, esse "novo modo de ser
Igreja" é, na melhor das hipóteses (e é o que acontece na maioria das
vezes na América Latina", assumido pelos responsáveis da Igreja.
Daí ele tende a ser hegemônico na estruturação e processo geral da comunidade
local: paróquia, diocese, região e até país. Mesmo assim, subsistem sempre formas
tradicionais, muitas vezes apenas modernizadas, de organização eclesial, ou
seja, um modelo de Igreja clerical, sacramentalista e socialmente
descomprometido.
Na
verdade, o estatuto eclesiológico das CEBs não é o de ser mais um movimento
de Igreja, mas, sim, de ser a Igreja toda em movimento. As CEBs não são, só elas, o
"novo modelo" de Igreja. Elas representam antes um projeto global de
Igreja, uma nova dinâmica, justamente um "novo modo de ser" (que é,
de resto, novo somente em comparação com o modelo tradicional, mas não com o
ideal do Novo Testamento). Desse novo projeto/processo as CEBs são, contudo, o
motor ou o eixo. De fato, o novo modelo de Igreja envolve, em torno do eixo das
CEBs, todo o efeito de renovação e inovação que está se dando na instituição
eclesial:
·
Renovação da paróquia tradicional
e suas atividades: catequese, liturgia, sacramentos, ministérios ordenados,
etc.;
·
Surgimento de novos serviços
pastorais para dentro e para fora, como as pastorais dos doentes, das
crianças, dos índios, dos negros, dos trabalhadores, dos direitos humanos,
etc.;
·
Resgate da religião popular, com
suas festas, romarias, novenas, etc.;
·
Criação ou renovação dos movimentos
eclesiais, como dos jovens, das mulheres, dos operários, lavradores, etc.;
·
Por fim, criação e fortalecimento dos movimentos
populares autônomos: associações, sindicatos e partidos.
É
tudo isso que compõe a "Igreja dos pobres" ou a "Igreja
popular", na qual as CEBs não são apenas parte, mas o tecido vivo.
4)
Leitura da Bíblia nas CEBs
A
pedra angular das CEBs é a Palavra de Deus. É para ouvi-la que elas se reúnem,
constituindo-se assim em ekklesia: a assembléia dos convocados pela
Palavra. Não é, pois, a amizade em si mesma e nem mesmo a luta pela
sobrevivência ou pela transformação social o constitutivo primeiro e específico
das CEBs, mas, sim a Palavra que suscita a fé. Diga-se também que nas CEBs a
Palavra de Deus é captada diretamente na Bíblia, sua testemunha primária e não
nas testemunhas derivadas, como seja o catecismo, os documentos do magistério
ou uma teologia qualquer, ainda que a teologia da libertação.
Mas
como as CEBs lêem ou escutam a Bíblia? Aqui se dá uma novidade hermenêutica
decisiva. Nas CEBs a Bíblia é lida sempre em confronto com a vida concreta
do povo. É o método Bíblia/vida. Esse procedimento afasta todo
fundamentalismo espiritualista. Insere a Palavra nas condições reais de
existência do povo: luta pela sobrevivência e pela mudança social. Entre Bíblia
e vida percorre um "círculo hermenêutico": a Bíblia induz ao compromisso
de vida e o compromisso de vida faz
entender melhor a Bíblia. O perigo oposto - a instrumentalização política da
Palavra - existe, sim, mas mais para o agente de classe média do que para o
povo, que possui um profundo senso de Deus e respeito sincero pelas coisas
religiosas.
É
preciso acrescentar aqui que a leitura bíblica nas CEBs se faz de forma comunitária,
ou seja, partilhada. Além disso, é uma leitura extremamente flexível e criativa,
na linha do "senso espiritual" dos padres, mas aqui é muito
"material".
Pode-se
dizer que as CEBs exprimem e difundem a grande fome e sede da Palavra de Deus
que possuem as massas religiosas e deserdadas do Terceiro Mundo. A
reapropriação da Bíblia por elas está levando a renovar a Igreja e a
transformar a sociedade segundo os desígnios do Espírito que inspirou os livros
santos.
5)
CEBs e compromisso social
As
CEBs não são tão somente grupos de amigos ou círculos de cultura bíblica. São
também e sobretudo comunidades comprometidas na luta pela justiça. O empenho
pela transformação social, ou seja, a dimensão libertadora é constitutiva dessa
nova experiência/movimento de Igreja.
Contudo,
essa dimensão nem sempre aparece desde o início, como quando nasce uma CEB de
um conflito social determinado. Ele está, sim, presente desde o começo ao menos
na forma de abertura e interesse. É o próprio crescimento da comunidade, na
base da "relação motora" Evangelho/vida, que vai levar à
concretização do compromisso social e a seu aprofundamento. Efetivamente, tal
compromisso vai-se desdobrando em várias etapas:
1.
mútua ajuda
no interno da comunidade e com a vizinhança;
2.
participação nas lutas no lugar de
moradia, ou seja, nas associações;
3.
entrada no mundo do trabalho,
com suas lutas sindicais e outras;
4.
por fim, engajamento político-partidário
em graus distintos.
Neste
sentido, as CEBs têm sido na América Latina, sementeiras de muitas organizações
populares, às quais continuam a fornecer militantes e a prestar apoio.
Contudo,
as CEBs sabem que sua função própria não é organizar a luta social, a não ser
supletivamente. Por isso, elas se esforçam por fazer surgir e fortalecer, ao
lado delas e articulados a elas, instrumentos populares autônomos, ao nível
associativo, sindical e partidário. As CEBs possuem como função própria e permanente
a evangelização, mas sempre em perspectiva libertadora, portanto, adaptada às
exigências de cada momento histórico.
Esse
é um ponto muito complexo, que não vai sem problemas, como o da secularização
radical de militantes oriundos das CEBs, na medida em que se afastam dela, e a
tentação de neo-cristandade, quando as CEBs fazem crer, às vezes, que sozinhas,
poderão transformar a sociedade, ou que a questão social encontrará solução no
dia em que todos forem como elas.
6)
CEBs e ecumenismo
As
CEBs possuem uma significação ecumênica particular pelo simples fato de recriar
a Igreja nos moldes da Igreja primitiva e não como reprodução do tipo vigente
da Igreja. Por seu caráter essencial ou elementar, elas já não enfatizam os
aspectos confessionais, no caso, católicos, mas, sim, os elementos cristãos
comuns: o batismo, a centralidade da fé em Jesus Cristo, as
Escrituras Sagradas, a ceia, a caridade, o martírio, etc. Não se trata, como se
sugeriu, de "protestanização" da Igreja católica, pois isso seria recair
no âmbito do confessionalismo. Trata-se, sim, do esforço de as CEBs se
aproximarem cada vez mais da Igreja una e indivisa, como era a Igreja
apostólica.
Em
seguida, mesmo guardando sua origem e identidade confessional (comunhão com a
própria Igreja mediante os próprios pastores), as CEBs realizam uma prática
ecumênica original. Ela se caracteriza por dois traços distintivos:
1.
Ela se constrói em torno do eixo
"caridade" (prática) e não logo em torno do eixo "fé"
(doutrina). Quer dizer: os cristãos pobres se encontram em torno das mesmas
lutas, onde aprendem a se conhecer e a estimar e só em seguida a orar juntos e
a dialogar sobre as respectivas convicções religiosas;
2.
A prática ecumênica das CEBs se faz no
nível da base eclesial, entre os simples fiéis, e não logo ao nível das
cúpulas hierárquicas e teológicas. Ora, os simples fiéis, especialmente se são
pobres, são mais verdadeiros e livres com relação ao diálogo ecumênico. Buscam
menos os próprios interesses, mas antes os "interesses de Jesus Cristo".
Mas
aqui a situação é muito diversificada. Se, por um lado, católicos e
protestantes - os "históricos" - se sentem à vontade nesse estilo de
cristianismo de base, existe, por outro lado, resistência, oposição e
concorrência da parte da maioria das igrejas, devido a seu fundamentalismo
bíblico e a seu conservadorismo político, sem falarmos ainda tradicional
preconceito anti-protestante nos meios católicos, inclusive das CEBs.
7)
Conclusão
O
processo de um novo modelo de Igreja (não de uma nova Igreja) ou seja, de uma
Igreja participativa e libertadora, que as CEBs encarnam como células vivas,
está apenas no início. A caminhada é longa e cheia de conflitos, precisamente
porque nova e histórica. Todavia, tudo indica que o caminho foi achado.
Trata-se agora de tocar para frente, ao sopro do Espírito.
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