MENSAGEM AO POVO
DE DEUS SOBRE AS
COMUNIDADES
ECLESIAIS DE BASE
Introdução
“As
Comunidades Eclesiais de Base”, dizíamos em 1982, constituem “em nosso país,
uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja
(...)” (Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil, CNBB, doc. 25,1).
Após a Conferência de Aparecida (2007) e o 12º Intereclesial (Porto
Velho-2009), queremos oferecer a todos os nossos irmãos e irmãs uma mensagem de
animação, embora breve, para a caminhada de nossas CEBs.
Queremos
reafirmar que elas continuam sendo um “sinal da vitalidade da Igreja” (RM 51).
Os discípulos e as discípulas de Cristo nelas se reúnem para uma atenta escuta
da Palavra de Deus, para a busca de relações mais fraternas, para celebrar os
mistérios cristãos em sua vida e para assumir o compromisso de transformação da
sociedade. Além disso, como afirma Medellín, as comunidades de base são “o
primeiro e fundamental núcleo eclesial (...), célula inicial da estrutura
eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção
humana (...)” (Medellín 15).
Por
isso, “Como pastores, atentos à vida da Igreja em nossa sociedade, queremos
olhá-las com carinho, estar à sua escuta e tentar descobrir através de sua
vida, tão intimamente ligada à história do povo no qual elas estão inseridas, o
caminho que se abre diante delas para o futuro”. (CNBB 25,5)
Os
desafios postos às CEBs hoje: a sociabilidade básica no clima cultural
contemporâneo
Com as
grandes mudanças que estão acontecendo no mundo inteiro e em nosso país, as
CEBs enfrentam hoje novos desafios: numa sociedade globalizada e urbanizada,
como viver em comunidade? Nascidas num contexto ainda em grande parte rural,
serão capazes de se adaptar aos centros urbanos, que têm um ritmo de vida
diferente e são caracterizados por uma realidade plural? Dentro desse contexto,
há outro desafio: como transmitir às novas gerações as experiências e valores
das gerações anteriores, inclusive a fé e o modo de vivê-la? Só uma Igreja com
diferentes jeitos de viver a mesma Fé será capaz de dialogar relevantemente com
a sociedade contemporânea.
O
século XX foi, sem dúvida, o século da globalização. Suas consequências
para a vida cotidiana são tantas que hoje se fala que o mundo vive não mais uma
época de mudanças, mas “uma mudança de época, cujo nível mais profundo é o
cultural” (DAp 44). De fato, “a ciência e a técnica quando colocadas
exclusivamente a serviço do mercado (...) criam uma nova visão da realidade”
(DAp 45), mas isso não significa um passo em direção ao desenvolvimento
integral proposto pela encíclica Populorum progressio e reafirmado pelo
Papa Bento XVI em Caritas in Veritate,
porque a lógica do mercado corrói a estrutura de sociabilidade básica que se
expressa nas relações de tipo comunitário. À medida que ele avança, expulsa as
relações de cooperação e solidariedade e introduz relações de competição nas
quais o mais forte é quem leva vantagem.
Desta forma, é
preciso valorizar as experiências de sociabilidade básica: as relações fundadas
na gratuidade que se expressa na dinâmica de oferecer-receber-retribuir. O
cultivo da reciprocidade tem como espaço primeiro aquele onde a vizinhança
territorial é importante para a vida cotidiana, como em áreas rurais, bairros
de periferia e favelas. É a solidariedade entre vizinhos – melhor dizendo,
entre vizinhas – que assegura o cuidado com crianças, idosos e doentes, por
exemplo. Não por acaso, esses espaços periféricos favorecem o desenvolvimento
de associações de vizinhança e movimentos que reivindicam melhorias de
equipamento urbano, bem como das próprias Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
São as relações de reciprocidade que, promovendo a solidariedade que é a força
dos pobres e pequenos, permite que se diga que "gente
simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue
mudanças extraordinárias".
O percurso histórico das CEBs no Brasil
A
experiência das CEBs não surgiu de um planejamento prévio, mas de um impulso
renovador, como um sopro do Espírito, já presente na Igreja no Brasil. Esse
impulso renovador se manifesta de forma crescente nos anos 50 e 60 do século
20. Na verdade, os tempos se tornaram maduros para uma nova consciência
histórica e eclesial: primeiro, pela emergência de um novo sujeito social na
sociedade brasileira, o sujeito popular, que ansiava à participação; segundo,
pela emergência de um novo sujeito eclesial, portador de uma nova consciência
na Igreja. Ele ansiava participar ativa e corresponsavelmente da vida e da
missão da Igreja. Esse sujeito provoca novas descobertas e conversões pastorais
(CNBB 25,7).
Nelas se
revigoravam ou restauravam as relações de reciprocidade, de modo a favorecer a
reconstrução das estruturas da vida cotidiana, do mundo da vida, em um contexto
social adverso. A interação entre a CEB enquanto organismo eclesial e a
comunidade local de vizinhos é uma das grandes contribuições da Igreja à
conquista dos direitos de cidadania em nosso País. Ao acolher pastoralmente a
população rural ou migrante em capelas e salões improvisados nos quais elas se
sentissem “em casa”, a Igreja lhes ofereceu uma possibilidade de organizar-se
autonomamente, quando as empresas e os poderes públicos só viam nela o
potencial de mão-de-obra a ser empregada no processo de industrialização.
A
experiência dos Intereclesiais
Os Encontros Intereclesiais das CEBs são patrimônio
teológico e pastoral da Igreja no Brasil. Desde a realização do primeiro, em
1975 (Vitória – ES), reúnem diversas dioceses para troca de experiência e
reflexão teológica e pastoral acerca da caminhada das CEBs. Foram doze
encontros nacionais, diversos encontros de preparação em várias instâncias
(paróquias, dioceses, regionais) e, desde a realização do 8º Intereclesial
ocorrido em Santa Maria
– RS (1992), são realizados seminários de preparação e aprofundamento dos temas
ligados ao encontro.
Manifestação visível da eclesialidade das CEBs, os
Encontros Intereclesiais congregam bispos, religiosos e religiosas,
presbíteros, assessores e assessoras, animadores e animadoras de comunidades,
bem como convidados de outras igrejas cristãs e tradições religiosas. Neles se
expressa a comunhão entre os fiéis e seus pastores.
Espiritualidade
e vivência eucarística
“O Concílio Vaticano II, eminentemente
pastoral, provocou um grande impacto na Igreja. Suas grandes idéias-chaves
trouxeram a fundamentação teológica para a intuição, já sentida na prática, de
que a renovação pastoral deve se fazer a partir da renovação da vida
comunitária e de que a comunidade deve se tornar instrumento de evangelização”.
(CNBB 25,11)
A exigência do Vaticano II é de razão
estritamente teológica, de ordem trinitária. A essência íntima de Deus não é a
solidão, mas a comunhão de três divinas Pessoas. A comunhão – koinonia, communio – constitui a realidade e a categoria fundamental que
permeia todos os seres e que melhor traduz a presença do Deus-Trindade no
mundo. É a comunhão que faz a Igreja ser “comunidade de fiéis”. Por isso, o
Vaticano II faz derivar a união do Povo de Deus da unidade que vigora entre as
três divinas Pessoas (LG 4).
A Trindade nos coloca, desde o início,
no coração do mistério de comunhão. O Papa João Paulo II, falando aos bispos em
Puebla, em 28 de janeiro de 1979, proclamou: “Nosso Deus em seu mistério mais
íntimo não é uma solidão, mas uma família... e a essência da família é o amor”.
A comunhão e a comunidade devem estar presentes em todas as manifestações
humanas e em todas as concretizações eclesiais.
Por
isso mesmo, a Eucaristia está no centro da vida de nossas comunidades de base.
É o sacramento que expressa comunhão e participação de todos e todas, como numa
grande família, ao redor da Mesa do Pai. Há comunidades que recebem a comunhão
eucarística graças a presença do Santíssimo no local ou pelo serviço de um
ministro extraordinário da sagrada comunhão. Como nossas CEBs, em sua maioria,
“não têm oportunidade de participar da Eucaristia dominical”, por falta de
ministros ordenados, “elas podem alimentar seu já admirável espírito
missionário participando da ‘celebração dominical da Palavra’, que faz presente
o mistério pascal no amor que congrega (cf. 1 Jo 3, 14), na Palavra acolhida
(cf. Jo 5, 24-25) e na oração comunitária (cf. Mt 18,20)” (DAp 253).
A
realidade das CEBs se expressa na liturgia e também na diaconia e na profecia.
A diaconia educa, cura as feridas, multiplica e distribui o pão e chama para a
solidariedade e a comunhão. A profecia anuncia o desígnio de Deus e denuncia os
abusos, a mentira, a injustiça, a exploração e exige a conversão. Por isso,
sofre perseguição, difamação, morte.
Temos
duas testemunhas recentes desse duplo ministério dos discípulos e discípulas de
Jesus Cristo: Dra. Zilda Arns e Irmã Dorothy Stang. Há muito conhecidas por
nossas comunidades pobres pelo Brasil afora, elas inspiraram a ação das CEBs.
Elas entregaram a vida e nos deixaram seu testemunho de fé e amor aos pobres,
fracos, desamparados e discriminados.
Esta espiritualidade também possibilitou a
produção de uma rica manifestação artística em nossas comunidades – músicas,
poesias, pinturas, símbolos – típicos da prática religiosa e cultural de nosso
povo, e que também são instrumentos de evangelização e de missão.
Vivência
e Anúncio da Palavra de Deus e o Testemunho de fé
“A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,
14). A acolhida da Palavra de Deus e a vivência comunitária da fé são
indissociáveis nas CEBs. A Bíblia faz parte do dia-a-dia da comunidade, estando
presente nos grupos e pastorais, nas liturgias e na formação, na reza e nas
ações que visam superar as desigualdades e injustiças da sociedade brasileira.
São espaços privilegiados de leitura bíblica nas
CEBs os círculos bíblicos e grupos de reflexão. Neles o povo se coloca como
sujeito eclesial, assume seu lugar na comunidade e na sociedade. O protagonismo
dos leigos nas CEBs é expressão viva de uma Igreja que se renova animada pelo
Espírito Santo, é também um sinal de que no discipulado estão surgindo novos
ministérios e serviços.
“O ministério da Palavra exige o ministério da
catequese a todos porque ‘fortalece a conversão inicial e permite que os
discípulos missionários possam perseverar na vida cristã e na missão em meio ao
mundo que os desafia’” (DGAE 64; DAp 278c). A vida em comunidade já é uma forma
de catequese. Ela predispõe para o aprofundamento da fé e da vida cristã por
meio do ministério da catequese e também pelo testemunho fraterno de seus
membros.
Solidariedade e
serviço
Alimentadas
pela Palavra de Deus e pela vivência de comunhão, as CEBs promovem
solidariedade e serviço. Reunindo pessoas humildes, as CEBs ajudam a Igreja a
estar mais comprometida com a vida e o sofrimento dos pobres, como fez Jesus.
Elas manifestam, mais claramente, que “o serviço dos pobres é medida
privilegiada, embora não exclusiva, do seguimento de Cristo” (DP 1145).
Mais ainda,
o surgimento das CEBs, junto com o compromisso com os mais necessitados, ajudou
a Igreja a “descobrir o potencial evangelizador dos pobres”, primeiro, porque
interpelam a Igreja, chamando-a à conversão; segundo, porque “realizam em sua
vida os valores evangélicos da solidariedade, serviço, simplicidade e
disponibilidade para acolher o dom de Deus” (DP 1147). As vocações religiosas e
sacerdotais despertadas pelas CEBs sinalizam vitalidade espiritual, comunhão
eclesial e um novo estímulo de consagração a Deus.
A
formação dos discípulos missionários
Na
sua experiência já amadurecida, as CEBs querem ser Igreja como o Concílio
Vaticano II desejou: uma Igreja toda ministerial a serviço do Reino de Deus. A
formação do discípulo missionário começa dentro delas pela experiência de um
encontro feliz e alegre com a pessoa de Jesus, sua vida e seu destino. Como
Jesus convocou discípulos e discípulas para estarem com ele, do mesmo modo, ele
convoca também hoje discípulos e discípulas para estarem com ele e dele
aprenderem o amor ao Pai, a fidelidade ao Espírito e o compromisso para a
transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.
Por
sua capacidade de cuidar da formação da própria comunidade e de olhar, com
compaixão, a realidade, as CEBs podem e devem ser cada vez mais escolas que
ajudam “a formar cristãos comprometidos com sua fé; discípulos e missionários
do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos
de seus membros” (DAp 178).
A participação
nos movimentos sociais, de cidadania, de defesa do meio ambiente em vista da
construção do Reino de Deus
No
que diz respeito à relação das CEBs com a dimensão sociopolítica da
evangelização, o Sínodo sobre A Justiça
no Mundo, de 1971, já tinha afirmado que “a ação pela justiça e a
participação na transformação do mundo nos aparecem claramente como uma
dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja
pela redenção do gênero humano e a libertação de toda situação de opressão” (introd.). Em vista disso, a Igreja no Brasil
exorta as CEBs e demais comunidades eclesiais a se manterem fiéis à própria fé,
no conteúdo e nos métodos, na busca da libertação plena, superando a tentação
“de reduzir a missão da Igreja às dimensões de um projeto puramente temporal”
(CNBB 25,64ss; Cf. EN 32).
Em
relação à aproximação das CEBs com os movimentos populares na luta pela
justiça, o documento 25 da CNBB afirmava que elas “não podem arrogar-se o
monopólio do Reino de Deus”. Na verdade, a CEB deve tomar consciência de que,
“como Igreja, é sinal e instrumento do Reino, é aquela pequena porção do povo
de Deus onde a Palavra de Deus é acolhida e celebrada nos sacramentos ...
sobretudo na Eucaristia” (70ss). As CEBs buscam, sim, a “colaboração fraterna
com pessoas e grupos que lutam pelos mesmos valores” (73).
As
CEBs têm despertado em muitos dos seus membros a espiritualidade do cuidado
para com a vida dos seres humanos, de todas as formas de vida e a vida do Planeta
Terra. A espiritualidade do cuidado tem motivado o surgimento de gestos e
atitudes éticas de respeito, de veneração, de ternura, de cooperação solidária,
de parceria, que promovam a inclusão de todos e de tudo no mistério da vida.
As
CEBs promovem a participação ativa de seus membros nos grupos de economia
popular solidária, resgatando o sentido originário da economia como a atividade
destinada a garantir a base material da vida pessoal, familiar, social e
espiritual. Contribui assim para que o trabalho humano, além de ser o lugar de
edificação da dignidade humana e promoção da justiça social, seja também
responsável pela promoção do desenvolvimento sustentável.
Espírito de
abertura ecumênica e diálogo interreligioso
Uma das
dimensões da espiritualidade cultivadas pelas CEBs é a do diálogo ecumênico e
interreligioso, que se dá pela abertura ao mundo do outro, promovendo a unidade
na diversidade e buscando as semelhanças na diferença. Esta espiritualidade dialogal tem sido
assumida pelas CEBs como uma missão de fraternidade cristã, numa atitude de
profundo respeito às demais manifestações religiosas, em busca da comunhão
universal. Essa espiritualidade nasce do
desejo expresso por Jesus: "Que todos sejam um!" (Jo 17,21)
Formação
de rede de comunidades
Os membros das
CEBs são discípulos de Cristo e ajudam a formar outras comunidades. Em meio a
grandes extensões geográficas e populacionais, a comunidade eclesial de base
requer que as relações sejam de fraternidade, partilha de vida, de bens e da
própria experiência de fé. Ela deve provocar um encontro permanente com a
Palavra de Deus e celebrar na liturgia, na alegria e na festa, a salvação que
Jesus Cristo nos trouxe.
A experiência da
fé e da participação faz amadurecer a comunidade eclesial de base, e lhe
confere características próprias de modo a levá-la a um relacionamento fraterno
de igualdade com as demais comunidades pertencentes à mesma paróquia. Com isso,
a matriz-paroquial ganha maior relevância pastoral na medida em que passa a
exercer a função de articuladora das comunidades.
Exortamos que a
paróquia procure se transformar em “rede de comunidades e grupos, capazes de se
articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos
missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DAp 172), tendo por modelo as
primeiras comunidades cristãs retratadas nos Atos dos Apóstolos (At 2 e 4).
Assim, a paróquia será mais viva, junto com suas comunidades, coordenadas por
leigos ou leigas, por diáconos permanentes, animadas por religiosos e
religiosas, e que tenham no Conselho Pastoral Paroquial, presidido pelo pároco,
seu principal articulador pastoral.
Conclusão
Em comunhão com
outras células vivas da Igreja, comunidades de discípulos e discípulas geradas
pelo encontro com Jesus Cristo, Palavra feito carne (cf. Jo 1,14), como são os
movimentos, as novas comunidades, as pequenas comunidades, que integram a rede
de comunidades que a paróquia é chamada a ser, reafirmamos aqui o que está
escrito no Documento 25 da CNBB: “Ao concluir estas reflexões, desejamos
agradecer a Deus pelo dom que as CEBs são para a vida da Igreja no Brasil, pela
união existente entre os nossos irmãos e seus pastores, e pela esperança de que
este novo modo de ser Igreja vá se tornando sempre mais fermento de renovação
em nossa sociedade”. (94)
Brasília-DF, 12
de maio de 2010
Dom
Geraldo Lyrio Rocha
Arcebispo
de Mariana
Presidente
da CNBB
|
Dom
Luiz Soares Vieira
Arcebispo
de Manaus
Vice-Presidente
da CNBB
|
Dom
Dimas Lara Barbosa
Bispo
Auxiliar do Rio de Janeiro
Secretário-Geral
da CNBB
|
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